A Alma em Casa
Voltámos para casa anteontem, nesse dia sagrado.
Não há no mundo maior delícia do que a normalidade. Cada palavra da Maria João
soa-me a música amada. Nos livros avisam que a remoção de tumores cancerosos do
cérebro pode provocar alterações de personalidade.
Eu tinha medo que ela deixasse de ser a Maria João
que eu amo. Mais medo ainda tinha que ela deixasse de me amar. A primeira vez
que a vi, poucas horas depois da cirurgia, no remanso dos cuidados intensivos,
perguntei-lhe se ela me reconhecia. E ela recuou a cabeça ligada, fez uns olhos
de surpresa repugnante e perguntou, com convencimento: "Mas quem é o
senhor?"
Nem sequer foi o sentido de humor a primeira coisa
a regressar. Nunca se foi embora. A Maria João não recuperou: manteve-se. O
milagre não lhe era exterior. O milagre é ela. Ela e todas as pessoas de quem
ela gosta, que gostam dela.
Eu bem que tento guardá-la como um segredo. Mas só
estou bem, quando tenho a sorte de ouvi-la e a vê-la e a vivê-la. Escrever
sobre ela é a coisa mais fácil que faço: é uma preguiça e um prazer, como se
conseguisse enganar quem me lê. É virar as costas ao mundo, que vai tão mal.
Mas que é um mundo que ainda contém a Maria João, a pessoa que eu amo, que
ainda aceita o amor que lhe tenho. Que cresce, ao contrário do cabrão do
cancro, previsivelmente, certamente, sem fazer mal; fazendo bem.
Meu grande amor: seja de que maneira for, continua.
Mesmo deixando de gostar de mim. Mas continua. Vive!
Miguel Esteves Cardoso, in Público, 06.05.12
Deixa estar
Ontem passámos o primeiro dia inteiro em casa. Num estado de namoro, de não acreditar na nossa sorte ou no nosso azar - mas de aceitá-lo com muitos obrigados - dormimos e acordámos juntos, como não temos feito nos últimos dias.
Depois do pequeno-almoçamos com o chá chinês e as torradas alentejanas e os queijos franceses dos últimos tempos. Namorámos e portámo-nos como fugitivos, exultando por conseguirmos estar sozinhos, longe dos hospitais e dos hotéis onde nos separaram, para nosso bem.
Depois almoçámos onde sempre almoçamos, comendo o que nos apetecia - logo no lugar onde tinha previsto, na véspera, o professor João Lobo Antunes, que almoçaríamos. No mais do que maravilhoso Neptuno. Não fosse ele um perito da Praia das Maçãs e da relação amistosa entre o sistema nervoso central e o peixe, que é óptima.
O dia-a-dia é milagre, como a vida. Ter a Maria João só para mim e ser para a Maria João só para ela é o mais que se pode pedir: até aceitar é difícil. O meu amor na minha vida. E o amor dela por mim na vida dela. E estes dois amores nas nossas vidas: que maior amor, nas nossas vidas, pode haver?
A Maria João deixa cair uma coisa. Como eu estou sempre a deixar. A coisa cai e parte-se. Sem deixar qualquer ausência ou importância. Diz ela: "Deixa estar".
É isso mesmo: deixemos estar. Estar já é bom. É morrer e não estar que não são.
Só resta o que é bom. A última coisa a ir-se é a primeiro que veio.
O amor é a vida: é mais. A vida é menos.
Miguel Esteves Cardoso, in Público, 07.05.12
É tão real este sentir incondicional no Amor. E eu digo-te: obrigado, meu amor.